sexta-feira, 11 de setembro de 2015



Crônica lírica


 
A crônica é lírica quando a saudade, a emoção e a nostalgia aparecem no texto buscando interpretar de forma poética os sentimentos. 
 
 
 
Exemplo
 
Apelo 
Amanhã faz um mês que a Senhora está longe de casa. Primeiros dias, para dizer a verdade, não senti falta, bom chegar tarde, esquecido na conversa de esquina. Não foi ausência por uma semana: o batom ainda no lenço, o prato na mesa por engano, a imagem de relance no espelho.
Com os dias, Senhora, o leite primeira vez coalhou. A notícia de sua perda veio aos poucos: a pilha de jornais ali no chão, ninguém os guardou debaixo da escada. Toda a casa era um corredor deserto, até o canário ficou mudo. Não dar parte de fraco, ah, Senhora, fui beber com os amigos. Uma hora da noite eles se iam. Ficava só, sem o perdão de sua presença, última luz na varanda, a todas as aflições do dia.
Sentia falta da pequena briga pelo sal no tomate — meu jeito de querer bem. Acaso é saudade, Senhora? Às suas violetas, na janela, não lhes poupei água e elas murcham. Não tenho botão na camisa. Calço a meia furada. Que fim levou o saca-rolha? Nenhum de nós sabe, sem a Senhora, conversar com os outros: bocas raivosas mastigando. Venha para casa, Senhora, por favor. 
(Dalton Trevisan)

 
Palhaços também choram
Apagaram-se as luzes do picadeiro. O palco que dantes aspirava e inspirava risos de súbito modo jaz ao silêncio da solidão.
 A grande tenda criada para doar alegria, se sente fria ao cair da noite, ao findar de outro dia, quando aplausos, sensações, humor e crianças dormem, quando o artista se vê romper a madruga sozinho, no obscuro.
 O raiar do sol traz apenas outra dor, a de ter que ser o personagem, o mágico, a “felicidade”. A dor de ter que nascer a cada novo espetáculo e de se vê morrer após o fim deste. Após as cortinas encerrarem a alegre e solitária dramaturgia.
E é no exílio… Perdoe-me! Melhor, no camarote, que as manchas surgem, o borrão, a tinta, a máscara, é quando o artista lava o rosto nas próprias lágrimas e o espelho parece ofender, dizer, falar…
 Ofender, dizer, falar. Tudo o que artista deseja é tal liberdade, isso mesmo, ele quer brigar, xingar, gritar, gritar… Ele quer se ver sozinho, mas casado de estar sozinho do mundo, já não mais deseja a solidão, ele quer apenas estar sozinho de si mesmo, liberta-se de seu personagem, desprender-se, esvaziar-se, gritar, gritar…
 Ah! E como deve ser traumático sorrir, quando se precisa chorar, divertir, quando se quer prantear, abraçar, quando não mais se sabe o prazer de amar.
 Ah…
 Mas amanhã as luzes do picadeiro acenderão novamente, todos virão, de todos os quantos, assistirão ao espetáculo do artista. Então, cabe a ele vestir seu terno colorido, sua peruca colorida e pintar o rosto de branco, vermelho, palhaço… Fingir que essa noite foi um surto, um acaso, uma ilusão, e que não sente a dor de ser um personagem, de ter que ao invés de viver a vida, interpretar.
 
 

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